
Como parar de apagar incêndio e começar a disputar a narrativa
GESTÃO DE CRISE
Da crise do Pix ao escândalo do INSS, passando por demissões de ministros, alta no preço dos alimentos e recuo no IOF, o governo tem colecionado desgastes públicos e visto sua popularidade derreter – mesmo com bons resultados na mão.
A inflação está sob controle, o PIB subiu acima do esperado, o desemprego segue em queda e os investimentos estão em alta. Mas, no Brasil de 2025, dados não bastam: uma crise mal administrada é capaz de ofuscar qualquer conquista.
A oposição, especialmente a extrema-direita, aprendeu a dominar a narrativa, o timing e a viralização. Já o governo parece sempre chegar atrasado, tentando apagar incêndios com um balde furado.
Mas crise não é exceção: é regra. Especialmente quando se governa sob ataques constantes, num ambiente em que a oposição opera em modo campanha 24/7, com redes sociais profissionalizadas e capacidade de disseminar narrativas em minutos.
Já não basta prestar contas à imprensa ou fazer coletiva no dia seguinte. O que vai sustentar o governo é a capacidade de se antecipar, reagir com agilidade e disputar o protagonismo dos fatos antes que eles sejam sequestrados por adversários.
Nesse cenário, o campo progressista também precisa agir. Movimentos, influenciadores, comunicadores e organizações da sociedade civil têm um papel decisivo em momentos de crise: traduzindo, ampliando, sustentando o que precisa ser dito e ajudando a construir a versão que vai ficar.
Conversamos com duas das maiores especialistas em gestão de crise do Brasil – Marilia Stabile e Heloisa Joly – para entender o que, de fato, funciona. O resultado é um diagnóstico duro, mas com muitos caminhos práticos e possíveis. Porque não basta sobreviver à crise: é preciso sair dela mais forte.
Heloisa Joly começou a carreira como repórter de política na Veja e se tornou uma das principais estrategistas em reputação, comunicação corporativa e gestão de crise do país. Liderou por anos a comunicação externa da Ambev na América do Sul e acumulou experiência na linha de frente de crises – de incêndios reputacionais a fake news virais. Hoje, ajuda grandes marcas e organizações a se comunicarem com clareza mesmo sob pressão.
Marilia Stabile é uma das maiores especialistas em gestão de crise do país. Atuou por décadas como jornalista de economia e se tornou referência trabalhando na linha de frente de algumas das maiores crises da história do Brasil corporativo. Em 2014 fundou a Ponto MAP, agência que mistura dados, mídia e comportamento para criar estratégias afiadas, e transforma desafios em posicionamentos claros e eficazes.

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1. A crise vai acontecer. O que muda é o quanto você se preparou para ela
A primeira lição é clara: não dá pra evitar crise. O que vai fazer diferença é a velocidade e a forma que você vai responder a ela. Montar o comitê de crise depois que a bomba estourou é como construir um extintor com a casa pegando fogo.
O que fazer:
Governo
- Ter uma equipe pronta, com papéis definidos e autonomia de resposta.
- Simular cenários antes que eles virem manchete.
- Mapear vulnerabilidades de cada área ou projeto – e treinar porta-vozes para cada tipo de situação.
Campo progressista
- Mapear quais organizações e pessoas podem agir em rede durante uma crise.
- Ter grupos de resposta rápida entre aliados – com canais diretos, textos base e conteúdos prontos para circular.
- Ensaiar coletivamente situações sensíveis (fake news, distorções, vazamentos) e planejar ações coordenadas.
“Esperar a crise escalar para responder é abrir mão da narrativa. Se você não for o protagonista, vai correr atrás da versão dos outros.”
- Marilia Stabile
2. O timing define tudo. E a extrema direita entendeu isso melhor do que ninguém
O vídeo do Nikolas Ferreira sobre o Pix saiu antes de qualquer reação do governo – e virou o ponto de partida do debate. Em vez de responder à proposta real, o país passou dias discutindo a versão plantada por ele. Enquanto isso, o governo organizava reunião, revisava minuta, discutia a resposta… e perdia a janela de disputa. A narrativa do deputado já tinha virado indignação e senso comum.
Tempo e tom não são detalhes – são armas políticas. E quando se fala tarde ou do jeito errado, não adianta mais ter razão.
O que fazer:
Governo
- Responder em até 24 horas com: explicação simples + plano de ação + cronograma.
- Definir um rosto claro para cada crise. A ausência de um porta-voz naturaliza a catástrofe.
- Comunicar diariamente, mesmo com informação parcial. Preencher o vácuo informativo gera confiança.
Campo progressista
- Se antecipar à pauta: monitorar redes e saber quando algo começa a ganhar tração.
- Criar conteúdos rápidos, com linguagem direta, para reagir nas primeiras horas – antes da mentira virar “opinião”.
- Pressionar o governo a responder com agilidade – inclusive nas redes. E, quando ele demora, ocupar esse espaço com responsabilidade.
3. Reputação se constrói antes da crise, não durante
Se a comunicação do governo só aparece quando tem crise, a imagem pública vira sinônimo de problema. Reputação não nasce da resposta, mas da presença constante, do discurso coerente e da entrega visível. Em momentos difíceis, o que protege é o lastro construído antes: a memória recente de quem viu o governo agir, entregar e comunicar com clareza.
Heloisa Joly chama isso de “colchão reputacional”: ou você constrói sua imagem com consistência, ou vai cair no chão duro da opinião pública.
O que fazer:
Governo
- Construir uma agenda positiva contínua, mesmo que sem tanto engajamento.
- Manter presença diária nas redes e na imprensa, não só em momentos de crise.
- Ter um plano de narrativa coerente: o que o governo quer que as pessoas lembrem dele?
Campo progressista
- Valorizar conquistas do governo no dia a dia, antes que a extrema-direita molde o senso comum.
- Relembrar vitórias e impactos concretos nos territórios e nas redes.
- Ajudar a manter a reputação viva com conteúdos positivos – mesmo quando não tem escândalo no ar.
4. Nem toda crise merece resposta. Mas toda crise exige leitura estratégica
Existe uma diferença entre reagir e ser reativo. Sair correndo para responder qualquer provocação pode piorar a crise – ou até fabricá-la do zero. Nem toda crítica precisa de resposta pública. Mas toda crise, real ou potencial, exige leitura de cenário: ela tá crescendo ou é só barulho da bolha? Já virou conversa no almoço ou ainda tá só no X?
Responder errado – ou no momento errado – dá palco, amplia alcance e desloca o foco. Às vezes, segurar é mais eficaz que rebater. Estratégia também é saber onde não entrar.
O que fazer:
Governo
- Monitorar o alcance real da crise antes de responder publicamente.
- Criar níveis de resposta, da contenção interna à comunicação institucional.
- Avaliar: é um tema sensível que precisa de resposta imediata, ou algo que vai morrer sozinho?
Campo progressista
- Evitar amplificar crises desnecessárias só porque está nas redes.
- Escolher em quais disputas entrar – e com que foco.
- Avaliar impacto real antes de postar, responder ou denunciar.
“Não é porque sua bolha está em chamas que o país inteiro está. Pergunte: seu vizinho já recebeu esse vídeo? Se não, talvez seja melhor deixar passar.”
- Heloisa Joly
5. Se a crise estourou, o silêncio vira cumplicidade
Saber escolher as batalhas é fundamental. Mas uma vez identificado que a crise ganhou corpo – saiu da bolha, virou pauta nacional, afetou a percepção pública – ficar em silêncio não é prudência: é deixar o adversário narrar sozinho.
A extrema-direita sabe disso. Ela ocupa o tempo e o feed com versões simples, emocionais e fáceis de compartilhar. E se ninguém do outro lado aparece com outra leitura, a versão deles é tomada como verdade. Mesmo quando há um erro real, comunique. O público não espera perfeição – espera clareza, firmeza e ação.
O que fazer:
Governo
- Reconhecer os fatos com rapidez, sem rodeios – e mostrar o que está sendo feito. Se você se cala, perde a chance de colocar argumentos na boca de quem pode te defender.
- Atualizar a comunicação conforme a crise evolui, sem deixar buracos.
- Ser o primeiro a enquadrar: explicar o que aconteceu, o que está sendo corrigido e por quê isso importa.
Campo progressista
- Ajudar a circular a resposta com agilidade, reforçando a narrativa em grupos de WhatsApp e nas redes sociais.
- Produzir textos, vídeos ou postagens que expliquem com linguagem acessível para diferentes públicos e apontem caminhos.
- Não esperar uma ação institucional para agir – quando a mentira já virou manchete, a hora de responder é agora.
6. Comunicação de crise não é nota oficial. É disputa simbólica
Durante uma crise, o que está em jogo não é só o que aconteceu – é o sentido do que aconteceu. Quem comunica não pode se limitar a informar: precisa disputar. A linguagem burocrática e as notas técnicas não têm a menor chance quando o adversário está apontando um culpado repleto de emoção e frases de efeito.
E mais: estamos na era dos cortes. Cada fala, coletiva ou live pode (e vai) ser recortada, repostada e reinterpretada fora de contexto. É assim que a dinâmica das redes funciona. A comunicação de crise precisa ser cirúrgica, com mensagens que resistam ao corte e que se sustentem sozinhas em 10 segundos de vídeo ou num print de WhatsApp.
O que fazer:
Governo
- Se posicionar com clareza e emoção legítima: indignação, empatia, firmeza. A forma como se fala comunica tanto quanto o conteúdo.
- Produzir falas e aparições públicas que deixem claro: quem está do nosso lado? O que está sendo defendido? Contra o quê estamos lutando?
- Parar de tentar agradar a todos. Escolher lado é parte da mensagem – e é isso que rende engajamento.
Campo progressista
- Criar conteúdos que conectem a crise com a vida real das pessoas.
- Trabalhar emoção com responsabilidade: raiva, indignação, alívio, esperança – o que você quer que a pessoa sinta ao ver isso?
- Usar a criatividade para gerar peças que não apenas informem, mas façam a pessoa querer compartilhar.
Seguimos em disputa
Se tem uma coisa que está cada vez mais clara é que a comunicação não pode ser tratada como acessório. Ela é infraestrutura política. E, em tempos de crise, vira linha de frente.
Não basta responder melhor. A gente precisa dominar a narrativa, se antecipar ao caos e disputar o sentido do que está acontecendo.
Isso vale para o governo. Mas também vale pra quem comunica, acompanha, traduz, compartilha. Nenhum governo se sustenta sozinho. É o apoio público que garante fôlego político e votos nas urnas, com posicionamento claro e senso de direção.
Contamos com vocês nessa.