COMPROMISSO e coerência

Como usar os valores que a pessoa já defende para introduzir novas ideias

A lógica que molda opiniões — mesmo quando os fatos dizem o contrário.

Você já tentou explicar um dado óbvio, mostrou estatísticas, desmontou uma fake news... e mesmo assim, a pessoa saiu da conversa ainda mais convicta do que pensava?

Pois é. O nome disso não é “birra” e nem “ignorância”: é coerência narrativa.

Um dos gatilhos mais poderosos da psicologia social é o desejo humano de parecer coerente com o que já se acredita. E esse desejo é tão forte que, muitas vezes, vale mais do que a lógica, os fatos ou a realidade.

Segundo Robert Cialdini, psicólogo e autor de As Armas da Persuasão, as pessoas tendem a manter atitudes, opiniões e comportamentos alinhados com compromissos anteriores – mesmo que pequenos, mesmo que simbólicos, mesmo que mal pensados.

E isso tem tudo a ver com política. Porque uma vez que alguém diz “eu sou contra essa pauta”, ou “eu apoio fulano”, ou até compartilha um meme ideológico, ela cria um vínculo com essa posição. E quanto mais repete esse comportamento, mais difícil é voltar atrás.

A POLÍTICA COMO DISPUTA POR COERÊNCIA (NÃO POR RAZÃO)

A maioria das estratégias de comunicação parte do pressuposto de que, se mostrarmos o argumento certo, os dados corretos e a informação clara, as pessoas vão mudar de ideia.

Exemplos reais:

1. Quem já se disse “liberal e contra o Estado” terá dificuldade em defender programas de transferência de renda, mesmo se eles forem eficazes.

2. Quem se apresenta como defensor da “liberdade de expressão” tenderá a rejeitar qualquer proposta de regulação, por medo de parecer incoerente.

3. Quem defendeu um político que depois virou réu vai tentar encontrar justificativas morais, ideológicas ou conspiratórias para manter a lealdade.

Quanto mais visível foi o compromisso, mais forte será a necessidade de coerência.

Compartilhar, curtir, comentar, votar, usar um bordão, vestir uma camisa, repetir um argumento: tudo isso reforça o senso de identidade narrativa.

Mas na prática, isso raramente acontece.

A política não se organiza em torno de fatos, mas de vínculos simbólicos.

E é aí que a técnica de Compromisso e Coerência se torna tão estratégica.

O que mantém uma pessoa presa a uma narrativa não é necessariamente sua veracidade, mas o fato de que ela já se comprometeu com aquela ideia em algum momento, mesmo que informalmente.

Como a extrema direita usa isso (e por que funciona)

A extrema direita compreendeu, com uma precisão cirúrgica, que coerência é mais poderosa do que verdade. E construiu todo um ecossistema de comunicação voltado a produzir microcompromissos simbólicos de forma cotidiana.

Exemplos de como ela faz isso:

  • Repete frases curtas e absolutas como “Deus, pátria, família”, “nossa bandeira jamais será vermelha” e “liberdade de expressão”.

  • Investe em memes, bordões e estéticas que transformam posicionamentos em marcas pessoais.

  • Constrói um universo de linguagem e pertencimento onde assumir outra posição pareceria não apenas incoerente, mas traiçoeiro.

A cada repost, a cada defesa pública, a cada identificação simbólica com o grupo, a pessoa vai afunilando seu caminho narrativo. E mesmo quando os fatos se impõem (como uma crise, um escândalo ou uma contradição evidente), ela já está presa à necessidade de manter a coerência com quem se tornou.

Não se trata apenas de ideologia. Se trata de identidade em movimento.

Como aplicar a técnica na comunicação progressista

A boa notícia é que esse mesmo mecanismo pode (e deve) ser usado para fortalecer narrativas progressistas, sem precisar confrontar diretamente quem pensa diferente.

A pergunta não é “como eu convenço alguém?”.
A pergunta é: como eu mostro que aquilo que estou propondo é, no fundo, o que essa pessoa já acredita?

  1. Comece pelo valor que a pessoa já defende

Não tente rebater o argumento.

Tente resgatar o valor que está por trás dele e redirecioná-lo para outro lugar.

📌 Em vez de “Você está errado ao defender liberdade total de expressão”, tente:

“Você sempre acreditou na liberdade. E é por isso que regular as big techs é importante: porque hoje, elas estão manipulando as pessoas, e não promovendo liberdade.”

📌 Em vez de “Cobrar imposto dos mais ricos é questão de justiça” diga:

“Você sempre foi contra privilégios. Então deve concordar que bilionário precisa pagar imposto como todo mundo.”

Essa abordagem não acusa, não ironiza, não confronta. Ela constrói uma ponte.

2. Faça perguntas que criem microcompromissos

Se você começa a conversa com uma afirmação óbvia e difícil de discordar, e conecta essa ideia a uma proposta progressista, você aumenta as chances da pessoa manter coerência com esse “sim” inicial.

📌 “Você acredita que todo mundo deve ser tratado com dignidade, certo?”
📌 “Você acha justo que quem ganha menos pague mais imposto que quem ganha mais?”
📌 “Você concorda que cuidar de quem a gente ama não deveria depender de quanto a gente ganha?”

Essas perguntas não exigem conversão ideológica – apenas coerência com valores compartilhados.

3. Dê uma saída digna para quem quiser mudar de ideia

Muita gente não muda de posição por medo de parecer incoerente, fraca ou volúvel.

O seu papel, como comunicador(a), é mostrar que mudar pode ser visto como uma evolução natural – não como derrota.

📌 “Muita gente acreditava nisso no começo. Mas agora, com o que a gente tá vendo, ficou claro que essa ideia não entrega o que prometeu.”
📌 “Eu também pensava assim. Mas depois de ver as consequências, percebi que estava defendendo uma coisa que na prática funcionava diferente.”

Você precisa criar espaço narrativo para que a pessoa se sinta coerente ao mudar.

Mostrar que ela continua sendo fiel aos seus valores, mesmo mudando de posição.

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Armadilhas a evitar

Mesmo com boa intenção, é fácil escorregar. Eis o que enfraquece essa técnica:

Confronto direto: ativa o modo defesa e reforça o compromisso anterior.

Tom de correção ou arrogância: ninguém gosta de ser tratado como ignorante.

Explicações excessivamente racionais: sem conexão emocional com valores, dados viram ruído.

Lembre: o objetivo não é mostrar que você tem razão.

É abrir caminho para que o outro se sinta coerente ao te escutar.

Nas redes, ajude a pessoa a construir uma narrativa sobre si mesma

Se a técnica de Compromisso e Coerência parte do princípio de que as pessoas querem manter uma continuidade entre o que foram e o que são, o nosso trabalho nas redes é oferecer elementos que sustentem essa continuidade.

Crie conteúdos que ativem valores amplos e compartilháveis

Use linguagem que permita que diferentes públicos se enxerguem no post, mesmo que não concordem com tudo.

Exemplo: um vídeo que fala sobre “cuidar de quem a gente ama” cria muito mais espaço de adesão do que um post sobre “reforma tributária”. Mas os dois podem estar falando da mesma coisa.

Crie microcompromissos em vez de buscar adesão total

Um dos erros mais comuns na comunicação política é achar que a pessoa precisa concordar com tudo de cara.

Na prática, um pequeno gesto de concordância já pode ser o início de uma trajetória de engajamento.

  • Curtir um post

  • Concordar com uma pergunta simples

  • Compartilhar uma frase alinhada com seus valores

  • Assinar um abaixo-assinado com uma causa “de entrada”

Isso não é “pouco engajamento” – é um primeiro comprometimento.

E a partir dele, a pessoa vai sentir necessidade de manter coerência com essa posição em futuras interações.

Você planta a ideia hoje, e colhe consistência amanhã.

Reforce reações positivas vindas de fora da bolha

Quando alguém que não costuma concordar com sua causa comenta positivamente ou compartilha algo seu, isso pode ser um ponto de inflexão narrativa para ela – se você souber alimentar.

Reforçar publicamente esse tipo de engajamento mostra que:

  • Essa pessoa “não está sozinha” na sua mudança de tom;

  • Esse novo alinhamento é legítimo e bem-vindo;

  • Existe um caminho de continuidade entre o que ela era e o que ela pode ser, sem precisar negar quem foi.

Ou seja: ajude a pessoa a se contar uma nova história sobre si mesma – uma história onde ela continua sendo coerente.

O que essa técnica ensina pra quem faz comunicação política

Porque move. Porque conecta. Porque organiza.

A técnica de Compromisso e Coerência é, acima de tudo, um convite a reformular a forma como lidamos com a resistência.

Ela mostra que o problema não é (só) a falta de informação. É a falta de um caminho seguro para a pessoa seguir sendo ela mesma — mesmo mudando de ideia.

👉Pare de mirar a razão. Mire na trajetória.

Você não está tentando vencer um debate. Está tentando conve​​ncer alguém de que pode continuar sendo fiel aos seus valores, mesmo apoiando algo novo.

A pessoa não precisa “virar progressista”. Ela precisa se reconhecer no que você está propondo.

👉Trate a mudança como um processo, não como um rompimento.

Pensar em coerência é entender que ninguém muda de ideia de uma hora pra outra.

É um percurso cheio de microengajamentos, desconfortos, silêncios, contradições internas.

Sua missão não é apressar esse processo.
É acompanhar, oferecer linguagem, acolhimento e segurança.

👉Crie conteúdo que autorize a transição - sem exigir autocrítica.

Um dos maiores bloqueios à adesão a pautas progressistas é a ideia de que “se eu concordar com isso, vou estar negando tudo que defendi antes”.

Cabe à comunicação quebrar essa lógica binária.

Mostrar que:

  • Apoiar justiça tributária não anula a preocupação com liberdade econômica.

  • Regular plataformas não significa censura.

  • Mudar de ideia não é trair o passado — é ser coerente com os próprios princípios diante de novas realidades.

Quem comunica bem não força ruptura. Constrói continuidade.

Coerência não é obstáculo – é caminho

Pessoas não mudam de ideia para admitir derrota. Elas mudam quando encontram uma nova forma de reafirmar quem são.

A técnica de Compromisso e Coerência não é só uma explicação sobre o comportamento humano: é uma estratégia de comunicação.

Quando reconhecemos que os vínculos simbólicos falam mais alto do que os argumentos, conseguimos redesenhar as rotas do convencimento político. E aí, em vez de forçar viradas bruscas, passamos a construir trajetórias possíveis.

No fim, mudar de opinião não precisa parecer um rompimento. Pode ser apenas o próximo passo lógico de alguém que, no fundo, continua sendo fiel aos seus próprios valores.

Este conteúdo foi inspirado no livro As Armas da Persuasão, do psicólogo e pesquisador Robert Cialdini. Publicado originalmente em 1984 e continuamente revisado desde então, o livro é um dos clássicos sobre psicologia da influência e persuasão, trazendo experimentos, teorias e aplicações práticas que seguem relevantes até hoje – especialmente para quem atua com comunicação política e mudança de comportamento.

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